maio 062016
 

maternidade

Questionando a relação de maternidade, transformando as relações sociais

 É preciso de uma tribo inteira para educar uma criança.

Provérbio africano

Mesmo que muitas mulheres não sejam mães, isso não exime nenhuma mulher (e nenhum homem) socialista e libertária de debater o tema da maternidade sob o viés feminista e de forma crítica para a construção de nossas organizações políticas e de um projeto de transformação da sociedade. Como esse tema é muito abrangente e complexo, este texto se propõe a pontuar alguns tópicos para se tentar construir uma nova postura diária diante das mulheres-mães que se tem contato, seja de forma rotineira ou esporádica, valendo essas reflexões para todos e todas que se interessam pelo tema e por construir relações mais solidárias e libertárias com as mulheres que são mães.

Iniciando a discussão a nível de Estado, embora algumas (insuficientes) políticas públicas reconheçam e atendam às necessidades de gestantes e puérperas, muito ainda precisa ser feito.O Estado e o patriarcado violentam as mulheres de forma sistemática, não só não atendendo suas necessidades típicas do feminino na saúde, educação, segurança e transporte, mas tirando direitos e criminalizando mulheres, principalmente as negras, quando se tenta resistir às opressões da máquina.

Atualmente, assistimos indignadas à culpabilização das mulheres em virtude do nascimento de crianças com microcefalia.  Sabemos que o zica vírus é transmitido e se perpetua por falhas em políticas públicas de saneamento básico e saúde, entre outras. Ao invés de garantir as condições de saúde pública para o desenvolvimento das pessoas, nesse caso, o Estado territorializa o corpo e a vida das mulheres, culpando-as por contrair o zica vírus. Junte-se a isso o abandono dos pais e do próprio Estado através do não-fornecimento de políticas públicas, trazendo à tona a discussão inadiável da descriminalização do aborto, de tonar a maternidade uma escolha e não algo compulsório.

A conjuntura há muito é de ataque aos nossos direitos e às nossas vidas. Exemplos disso são a criminalização do aborto, o estatuto do nascituro, pouco atendimento diferenciado na saúde (física e mental) para mulheres, carência na proteção à mulher (e principalmente às negras) contra a violência doméstica, ausência do feminismo como assunto a ser abordado nas escolas e, em alguns Estados, há inclusive uma proibição expressa nesse sentido, dentre tantos outros!

A nível de relações cotidianas e no campo simbólico, a romantização da maternidade é um mecanismo machista e patriarcal de naturalizar e perpetuar a sobrecarga de trabalho sobre as mães. Decorrente dessa romantização surge a CONIVENTE E CONVENIENTE figura do “pai quando dá”. É possível facilmente constatar variados casos de relações em que o pai é ausente e só faz o papel de cuidador quando quer, ou ainda quando usa a criança como chantagem para se aproximar da mãe, quando a responsabilidade com a criança é só da mãe, mesmo se dividirem o mesmo espaço etc. Vivenciamos ou presenciamos diversos casos e relatos de mulheres, casadas ou não, que trabalham, vão buscar as crianças na escola e fazem tudo dentro de casa, e o pai é ausente nas atividades do dia a dia.

O “pai quando dᔓ(…) infelizmente não percebe [ou simplesmente não se importa] que o preço de sua liberdade e de sua mobilidade se faz à custa da territorialização da mulher e do tempo feminino. E que todas as vezes que ele sai pela rua sozinho, caminhando com as suas próprias pernas, é porque tem uma mulher que está fazendo o trabalho de cuidado de seu(sua) filho(a)” (Camila Fernandes).

Atrelado à territorialização da mulher e do tempo feminino, acaba por sobrar pouco (nenhum) tempo e espaço para a mulher curtir o ócio, o lazer, o trabalho, uma leitura, um hobby, um sonho ou o que quer que seja sem os/as filhos/as. Acaba também que a necessidade psicológica (fundamental!) de que as mulheres-mães tenham condições de encarar um processo de autoconhecimento, de reflexão sobre si mesmas, de cuidado de sie empoderamento coletivo fica relegado para …. DEPOIS (nunca). Resultado: muitas mulheres frustradas e deprimidas, mas se perguntando “por quê?”.

Segundo Maria José, psiquiatra do Coletivo Feminino Plural, “as mulheres casadas que têm mais de três filhos, isso é um risco para a saúde mental. Porque são elas que fazem tudo, cuidam da casa, criam as crianças sozinhas, são elas que abortam, elas que gerenciam a casa. Quando chegam do trabalho, se forem pobres, vão ter que fazer de novo tudo que fizeram na casa da patroa […]. É uma sobrecarga que não termina nunca. Então, o casamento é um risco para a vida das mulheres. Infelizmente, essa é a realidade. Porque aumenta demais a sobrecarga de trabalho”.

Do outro lado da romantização da maternidade, um outro mecanismo de violência sobre as mulheres é a exclusiva culpabilizaçãoda sociedade sobre ela por engravidar, o que se torna um grande tormento psicológico proveniente dos olhares de julgamento em cima da mulher (mais ainda quando é preta e pobre), além da falta de cuidado, da grande carência na gentileza e acolhimento a essas mulheres nos espaços públicos e dos insultos contínuos que a sociedade e(muitas vezes) a família reforçam e descarregam. Nada mais humilhante do que as palavras “Quem pariu que crie”, “abriu as pernas agora vai ter”, “é obrigação sua criar”, “quem mandou não se prevenir?!”.  Estes e outros insultos pesam para que a mulher carregue a culpa de ser mãe para o resto da vida. E ainda acreditando no romantismo da maternidade, a mãe sente que tem que aceitar tudo isso calada e sem rebater.

Diante desse quadro desolador, principalmente para as mães negras e pobres, é necessário um conjunto de ações que rompam com esses dispositivos (reais e simbólicos) do poder machista e patriarcal. A começar pelo conselho: “mais do que questionar, aproveite a oportunidade para auxiliar, para por em prática sua gentileza, seja puxando um carrinho no mercado enquanto a mãe segura o filho no colo, seja dando o lugar na fila”. (Mariana).

Também temos necessidade de progressivamente desromantizar a maternidade, como uma forma de mostrar que não só a mulher tem a obrigação de cuidar ou de ocupar todo o seu tempo nesta função.  Não falamos aqui em deixar de cuidar do filho ou da filha, mas de dividir as responsabilidades, garantindo que a mãe possa dar continuidade a seus planos de vida. Portanto, que apareçam nos discursos cotidianos e em nossas ações o incômodo e o desconforto do privilégio do “pai quando dá” – que pode ser um amigo, um colega, um familiar.

Também incentivamos a prática libertária de comuna e de responsabilidade coletiva pela socialização e criação das crianças. Buscar formas de dividir responsabilidades e multiplicar a educação das crianças é uma das maneiras mais potentes de empoderar as mulheres na luta feminista! Daí as organizações políticas, os movimentos sociais e coletivos precisarem estar atentos para as mulheres-mães que frequentam seus espaços e constroem a luta. É fundamental reconhecer que o simples fato de essa mãe estar levando sua criança para um espaço de esquerda já é uma contribuição para o fortalecimento das lutas e para a construção de uma sociedade mais justa, a partir da educação de crianças em espaços com cultura libertária.

E aqui, nós, que organizamos espaços coletivos e libertários, precisamos estar atentas: “ao se aproximar de ambientes e coletivos feministas, sejam eles presenciais ou não, a mulher precisa se sentir acolhida, segura e representada. Com a mãe não é diferente. Mas estar em um lugar onde há muita antipatia com a sua condição de mãe não é lá muito legal. Agora imaginem um ambiente feminista que não é acolhedor para uma criança. Se não acolhe a criança, logo não vai acolher a mãe”(Adauana Campos). Por isso que é tão valioso que as organizações políticas e os movimentos sociais incluam as mães em sua agenda e na sua estrutura e disposição política de se fazer movimento.

Por fim, gostaríamos de terminar o texto com a importância da desobediência para nossas crianças – tema tão caro para nós, anarquistas! Não se trata aqui da rebeldia sem causa, mas da consciência de se estar sofrendo uma injustiça e da raiva decorrente disso bem direcionada e expressa. Não se trata só de desobedecer, mas de saber quando e como desobedecer! E que ato de coragem e ousadia é se nossas mães-amigas libertárias estimularem nossas crianças a despertarem suas capacidades críticas a isso – ainda mais diante delas mesmas ou de outras figuras de “autoridade”!

“Na verdade, quanto mais permitimos que o outro siga a sua própria vontade e criamos um ambiente de condições favoráveis e saudáveis para que isso ocorra, mais respeito conquistamos nessa relação e, de lambuja, contribuímos para quebrar esse ciclo autoritário, competitivo e dominador que impera em nosso contexto social.As pessoas mais criativas e que surpreendem nesse mundo são as que aprenderam que é preciso desobedecer. Quando aprendemos a desobedecer, (re)descobrimos o prazer da vida, aquela felicidade genuína da infância e passamos a obedecer (aí sim), a nós mesmos, ao nosso coração.” (Bruna Gomes)

Referências

Camila Fernandes:

http://www.geledes.org.br/pai-quando-da/?fb_ref=4725e72374f240998357609a68798cbf-Facebook

Adauana Campos:

https://www.facebook.com/ogatoeodiabo/photos/a.189948551181226.1073741826.189944834514931/523383297837748/?type=3&theater

Julia Harger:

https://temosquefalarsobreisso.wordpress.com/2015/11/22/desconstruir-a-maternidade-romantica-e-nosso-papel/

Maria José:

http://www.geledes.org.br/o-casamento-e-um-risco-para-a-vida-das-mulheres-diz-medica-especialista-em-saude-mental-feminina/#ixzz44LrTTyRk

Bruna Gomes:

http://brincandoporai.com.br/a-importancia-da-desobediencia/

Mariana:

http://porumavidadeverdade.com/eu-mae-solo-de-tres-puerpera-longe-da-familia-e-feliz/

Baixe esse arquivo na versão do Boletim Opinião Anarquista – Divulgue a Imprensa Libertária [ORL]

 

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