set 302008
 

Nº. I ● SETEMBRO DE 2008

Eleições, representatividade e outras enganações…

Exatamente no momento em que o capitalismo arrasta a humanidade para impasses cada vez mais profundos e à medida que a dinâmica da economia mundial reduz cada vez mais as margens de atuação dos Estados nacionais, tornando-os a cada dia mais impotentes para conter o aumento da miséria e das desigualdades sociais, minando assim as bases de sua legitimidade, a esquerda, assim como a direita, nos oferecem mais uma vez o mito das eleições e da democracia representativa como remédio para todos os males. Em vez de um chamado à luta contra a sociedade do capital, nos convocam, em coro afinadíssimo, a renovarmos nossa fé nos políticos, no Estado e no próprio capitalismo.

Nada mais natural do que isso, e seria absurdo esperar o contrário. Afinal de contas, pese às diferenças que ainda possam existir entredireita e esquerda (e elas são cada vez menores e menos perceptíveis!), ambas colocam-se num mesmo círculo de fogo que limita suas disputas ao controle do Estado burguês e à conseqüente e inevitável defesa da ordem capitalista.

As eleições e a mistificação do Estado

 

As eleições, ainda que sejam apresentadas como o ápice, e muito comumente como a única forma de participação política nas sociedades de capitalismo democrático, são na verdade uma mistificação conservadora e uma forma de alienação política, visto que tratam sempre de uma transferência de poder para outros e do abandono da luta direta contra o capital em nome de medidas reformistas e democratizadoras, hoje cada vez mais difíceis de serem realizadas.

Durante mais de um século, as esquerdas, tanto quanto a direita, prestaram ao capital o precioso serviço de mistificar o papel do Estado e ajudaram a disciplinar e circunscrever as lutas no interior da sociedade capitalista aos limites da institucionalidade burguesa.

A direita cretina sempre mistificou o papel do Estado, porque afinal de contas ela é naturalmente uma defensora ardorosa da barbárie capitalista, e por isso, sempre se serviu do Estado para defender a ordem e os interesses da classe dominante. Já a esquerda reformista (e também a bolchevique!), também mistifica o Estado na medida em que o considera como um instrumento, que tanto pode ser colocado a serviço da burguesia como da classe trabalhadora, dependendo de quem o controla. É nessa visão instrumental que ela vai buscar justificativa e legitimidade para seu projeto político de controle do aparelho estatal. A mistificação, neste caso, consiste em abstrair o Estado da rede de relações sociais capitalistas da qual é parte e apresentá-lo como um ente autônomo em relação ao capital. Dessa forma, o Estado é apresentado de forma invertida: de agente ativo do processo de dominação capitalista e defensor dos interesses da classe dominante, ele aparece como principal agente de mudança e defensor dos interesses da classe trabalhadora.

A própria realidade da economia capitalista atual se encarrega de desmentir essa mistificação, visto que hoje ela possui uma capacidade inigualável de se impor aos Estados nacionais, reduzindo cada vez mais suas margens de autonomia para definir até mesmo suas prioridades de investimento. Estes se direcionam cada vez mais para atender o setor privado, ao passo que diminuem no setor público, degradando cada vez mais os serviços públicos fundamentais como saneamento, saúde, educação, previdência, etc. Mesmo os Estados mais poderosos tiveram que adaptar-se aos imperativos do capital mundializado, de forma a muni-lo de condições favoráveis de lucratividade, encarregando-se de providenciar-lhe recursos e meios institucionais que lhe garantam apropriar-se destrutivamente dos recursos naturais e arrancar sem dó o couro de uma força-de-trabalho cada vez mais fragilizada e em condições de super-exploração.

Por outro lado, é exatamente porque o capitalismo provoca um aumento da exploração e das desigualdades, que ele também provoca incessantemente a necessidade de conflitos sociais. Como não pode fazer um uso generalizado da violência, e ao mesmo tempo precisa resguardar o domínio do capital e da classe dominante contra ataques ameaçadores, o Estado é obrigado a recorrer constantemente a mecanismos institucionais de arregimentação e disciplinamento das lutas.

Trata-se sempre de tentar circunscrever as lutas aos limites da institucionalidade e as disputas políticas internas ao sistema representativo burguês (eleições, disputas entre esquerda e direita, etc.) como forma de desviá-las do combate direto contra os poderes econômicos e estatais. Não foi por outro motivo que a sociedade de mercado convenceu-se já faz tempo que pode conviver tranquilamente com a democracia representativa, com eleições livres e com governos de esquerda, fazendo disso poderosos elementos de pacificação social.

A mentira da representação

O governo representativo não é o governo do povo e a democracia burguesa não é um instrumento de participação direta e de controle efetivo da maioria sobre a sociedade. Ela é, pelo contrário, uma garantia de que essa participação e esse controle não se tornem possíveis. A idéia de que o eleitor decide os rumos da sociedade por meio do voto é uma mentira descarada, que a vida real desmente o tempo inteiro e que serve apenas para mascarar as brutais desigualdades de acesso e exercício efetivo do poder político existentes na sociedade, decorrentes das diferenças de poder econômico.

A verdade é que cotidianamente “o cidadão comum”, o mesmo que é bajulado e acariciado nas campanhas eleitorais como soberano e senhor dos rumos da sociedade, é distanciado dos processos de decisão política na esfera do Estado, que no geral são tomadas sem o seu conhecimento e à revelia dos seus interesses e das suas necessidades concretas. Além disso, “a mão que afaga, é a mesma que apedreja”: toda vez que se organiza para conquistar seus interesses por meio de sua própria luta, ele é obrigado a enfrentar a violência da polícia e da justiça do Estado. Apenas um minuto depois de votar o eleitor volta a ser o escravo de sempre, entregue às suas misérias cotidianas, explorado, humilhado, visto com desprezo e chicoteado pelo patrão, pela polícia e pelos carrascos que ele próprio elegeu.

As eleições revelam-se assim apenas um jogo sujo, no qual se simula a busca do bem-comum e o atendimento das demandas e necessidades dos mais pobres. O que se esconde, e cada vez pior, por trás do cinismo e da canalhice das propagandas eleitorais, é a disputa pela obtenção de privilégios materiais e políticos por meio da conquista de cargos no Estado e da rapina dos recursos públicos para atender a interesses particulares de parlamentares, dos partidos e frações de classe dos quais fazem parte, e ao fim e ao cabo, voluntariamente ou não, garantir a continuação de um sistema social desumano e injusto.

A representatividade é uma grande mentira, na medida em que a garantia de direitos políticos formais é incapaz de garantir até mesmo a satisfação das necessidades mais elementares de um número crescente de pessoas. A sociedade capitalista zomba dessa legião de famélicos miseráveis que se multiplicam como coelhos pelos campos e cidades do Brasil e do mundo. Eles não possuem poder para decidir sequer se irão comer, se poderão cuidar da saúde ou se terão um teto para morar. Esta é a grande barbárie que os sistemas representativos se propõem ocultar e perpetuar.

A crise da esquerda

A crise da esquerda brasileira não é simplesmente um resultado do descrédito provocado pelos escândalos do PT e do governo. Na verdade, o que os petistas tornaram evidente foram os limites e o fracasso do próprio projeto político da esquerda de privilegiar a via eleitoral e a conquista do Estado. Em primeiro lugar, por que sua legitimidade é minada pela própria crise do Estado, que não pode ser usado para promover políticas reformistas de impacto e nem reverter o avanço da degradação das condições de vida. Ela só pode governar em conformidade com as regras e os limites institucionais de um Estado totalmente inserido e entregue aos ditames da economia mundial, que ela pode até criticar enquanto ainda não é governo, mas que querendo ela ou não, é obrigada a defender quando governa. Ao fim e ao cabo, esta acaba sendo a principal condição de sua governabilidade. Seu governo torna-se algo assim como um violino: a gente segura com a esquerda e toca com a direita!

Em segundo lugar, por que as próprias disputas eleitorais obrigam os partidos a afastar-se cada vez mais de suas aspirações programáticas de cunho socialista (os que ainda possuem alguma!). Ainda que sigam mantendo um discurso folheado por uma dourada retórica da ética e do socialismo, seu “radicalismo” acaba sendo proporcional ao seu crescimento eleitoral e político. Se quiserem disputar e ganhar eleições, precisam fazer concessões à mentalidade paternalista e clientelista que são a marca registrada das eleições no Brasil, visto que somente uma minoria vota por concepções ideológicas ou baseada em identificações de classe. Além disso, se não quiserem condenar-se à insignificância eleitoral dos pequenos partidos, sem estrutura e sem recursos, os que querem ganhar eleições precisam amarrar alianças oportunistas e recorrer a fontes de financiamento capitalistas. Exemplo disso é a candidatura de Luciana Genro (PSOL) à prefeitura de Porto Alegre, que recebeu 100 R$ mil reais da Gerdau, o equivalente a 15% da verba prevista de campanha, que é de 700 R$ mil. A direção municipal do partido confirma e justifica: “É lógico que seria muito melhor se os trabalhadores tivessem recursos para garantir o financiamento de nossa campanha a partir de suas decisões soberanas. Mas esta não é a realidade hoje. A opção de não aceitar recursos empresariais em nenhuma hipótese, neste quadro, seria a de não realizar a campanha com força de massas e com capacidade de disputa”. Interessante notar que, contraditoriamente, a candidatura à prefeitura de Fortaleza pela Frente de Esquerda Socialista (PSOL/PSTU), cujo candidato é Renato Roseno, orgulha-se de dizer na sua propaganda política que não aceita receber dinheiro de empresas, apenas de indivíduos. Posição que apenas o condena a continuar eleitoralmente inexpressivo! São as regras do jogo…

A esquerda eleitoreira não tem como escapar da armadilha e precisa legitimar o processo viciado das eleições, afinal de contas, é disso que dependem os cargos, as contas do partido, os altos salários dos parlamentares e assessores, os privilégios e posições de poder das lideranças e burocratas partidários e até a ascensão social de uma parte da militância. De meio, o partido passa a ser um fim em si mesmo, que passa a viver da política e do Estado. Aquilo que ainda existe de luta é substituída pelas disputas por cargos e pelo recolhimento às tarefas administrativas e burocráticas, a utopia cede lugar ao realismo político e a independência de classe às alianças oportunistas e à dependência financeira, e, por fim, de atiradora de pedras ela passa a protetora das vidraças.

Autonomia, ação direta e auto-organização anticapitalista

A construção de resistências anticapitalistas exige desde já o abandono das ilusões em torno dos que ainda advogam uma convivência pacífica entre as classes e a idéia de que é possível humanizar e administrar o capitalismo por meio do Estado e de políticas reformistas. Ao rejeitarmos o capital, o Estado e sua democracia representativa, propomos como alternativa a autonomia, a ação direta e a auto-organização das lutas anticapitalistas. Defendemos o desenvolvimento de movimentos e lutas sociais que sejam combativos e façam o uso mais amplo possível da autonomia e da ação direta, ou seja, da capacidade de definirem seus próprios objetivos, métodos de organização e de luta de forma independente, sem submeter-se a qualquer partido político, governo, empresa, etc. Ao contrário da representatividade, que consiste em transferir a iniciativa e o poder para outros, na ação direta o que se busca é a restituição da capacidade de decisão e ação que nos é alienada, evitando assim que interesses contrários se sobreponham aos nossos.

É na luta que se aprende a lutar! Ela é uma ferramenta pedagógica que impulsiona a reapropriação do poder de agir e decidir sobre nossos próprios destinos, restabelecendo laços de apoio mútuo e de solidariedade essenciais entre os protagonistas de um novo devir. Por isso, acreditamos que os movimentos sociais e demais organizações populares devem buscar formas de tomadas de decisão baseadas na democracia direta e na auto-organização, decidindo seus rumos em assembléias horizontais com participação igualitária e não-hierárquica, a partir dos locais de moradia, trabalho, atividade cultural e estudo.

Por esses motivos, a Organização Resistência Libertária não se propõe a funcionar para si mesma, mas a ser um instrumento inserido nas lutas populares e nos movimentos sociais. Nossa inserção nestas lutas não visa de forma alguma dirigi-las ou submetê-las a nossos próprios interesses, mas contribuir para impulsioná-las, estimulando a autonomia, a combatividade, a ação direta e a democracia direta, contribuindo para que estas lutas ultrapassem as reivindicações imediatas, e assumam um caráter revolucionário e de afirmação da necessidade de superação da sociedade capitalista.

Vote nulo ou não vote!

Contra a farsa da eleição, autonomia e auto-organização!

 

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