O ANARQUISMO ESPECIFISTA NO NORDESTE DO BRASIL
A História do Anarquismo no Nordeste não é tão recente quanto se pensa. A participação e influência da militância anarquista nesta região, que hoje conhecemos como Nordeste do Brasil, pode ser facilmente notada na imprensa e nas diversas associações de trabalhadores desde o começo do século passado, quando o Anarquismo contava com forte enraizamento nas lutas e mantinha firme seu vetor social. Trazer à luz tal História deve ser uma de nossas tarefas, pelo aprendizado adquirido com o conhecimento das experiências de outrora, como forma de respeito à memória de companheiros e companheiras que tanto fizeram junto aos oprimidos e explorados dessas terras e pela própria ideologia que reivindicamos.
O Capitalismo, sistema de organização e dominação social alicerçado na exploração e opressão das classes trabalhadoras, longe de caminhar evolutivamente para sua própria destruição ou ser engolido por suas próprias crises, como advogaram muitos teóricos da tradição socialista autoritária, avança vencendo essas mesmas crises, reorganizando suas contradições e (re)modelando formas de opressão e restrição da liberdade. Isso nos faz acreditar que não podemos esperar o capitalismo cair por si só, muito menos adotar uma postura apenas de resistência aos efeitos das tensões pelas quais passa o mundo do capital e suas instituições. Faz-nos acreditar que, antes de tudo, é urgente a necessidade dos trabalhadores contra-atacarem às classes privilegiadas e sua instituição mantenedora da miséria, o Estado. Para isso, urge novamente a vital organização do nosso povo, com a firme disposição de enfrentamento aos patrões e governos.
Dentro desse panorama, é importante destacar que entendemos como os protagonistas das lutas sociais aqueles que para nós devem construir uma transformação social radical do mundo em que vivemos, no sentido de substituir o sistema de dominação social do capital por outro baseado na liberdade, na igualdade e na solidariedade. Algumas correntes socialistas, fiéis a sua raiz ideológica, seguem mantendo o “fetiche” de que apenas os operários urbanos e das fábricas são os protagonistas de uma verdadeira transformação da sociedade; disseminando um forte desprezo pelos setores mais oprimidos e explorados do nosso povo e demonstrando a falta de entendimento político pelo apego a um centralismo caduco e equivocado. Para estas correntes, os únicos “sujeitos revolucionários” são os operários – “que sujam os macacões nas fábricas” – em detrimento do conjunto do proletariado, entendidos aqui enquanto o conjunto dos/as trabalhadores/as, inclusive os/as desempregados/as, e das comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, pescadores e etc).
Resumir nossa atenção e esforço militante a um único setor, por mais importante que este seja, é cair em um erro já alertado por Mikhail Bakunin, desde a segunda metade do século XIX. A revolução apenas dos trabalhadores fabris e das cidades é insuficiente para dar conta de um processo avançado de lutas que nos leve a uma “vitória duradoura” pela transformação radical da sociedade. Com essa visão que restringe os sujeitos sociais da mudança, no máximo o que conseguiríamos seria uma revolução política, parlamentar, onde caberia apenas mais o reforço da ordem estatal e quimérica do Estado. Neste sentido é que enfatizamos a necessidade de uma Revolução Social, que enseje em seu bojo uma transformação das estruturas políticas, obviamente, mas que traga fundamentalmente transformações das estruturas econômicas e sociais. Uma revolução que possibilite criar uma nova sociedade, construída por homens e mulheres livres e iguais, e não mais uma revolução que conduza apenas ao reflexo desta (des)ordem de injustiça e opressão do mundo atual.
O Nordeste do Brasil, durante séculos uma região marcada pelo latifúndio e suas graves consequências – as mais visíveis sendo o coronelismo e o assujeitamento racista de índios e negros –, vem sofrendo um forte e intenso avanço do capital nas ultimas décadas, sob a justificativa de diminuir a histórica desigualdade econômica existente nas diferentes regiões do Brasil. O número de investimentos avança não somente em apoio à empresa turística perpetrada pelos Estados nordestinos e sua burguesia, com foco no litoral e suas belezas naturais, mas também avança no interior, nas regiões mais afastadas, em diferentes setores como energia, mineração, comércio, construção civil etc. É forte o incentivo para as indústrias que querem se instalar em nossa região e explorar a firme disposição de nosso povo para incrementar o roubo dos empresários e gerar cada vez mais lucros aos capitalistas. Como exemplo disso, temos a transposição de águas do “velho Chico”, o canal do sertão em Alagoas, construção de usinas de energia térmica a carvão, implantação de parques de energia eólica, instalação de refinarias de petróleo, ampliação de pólos produtores de alimentos para exportação, estaleiros, instalação de montadoras de automóvéis, construção de vários resorts e hotéis no litoral – entre outros mega-empreendimentos imobiliários destruidores do meio ambiente e de modos de vida tradicionais –, e tantos inúmeros exemplos mais que demonstram a disposição do capitalismo em recolonizar essa região que há muito deixou de lado, tratando como a “periferia” da produção e da acumulação do capital nacional.
Tendo em vista isso, não podemos mais considerar a região em que vivemos como afastada dos pólos econômicos e de produção no Brasil, pois atualmente o alvo do capital e de sua sanha destruidora se voltam para outros lugares além dos “centros” políticos e econômicos. Temos que pensar nossa atuação, enquanto anarquistas organizados, neste processo. Não se pode pensar nos estados ao sul do Brasil como lugares nos quais a luta de classes se apresenta com mais intensidade que em outros lugares do país, pois se assim fizéssemos validaríamos a idéia marxista de que os setores avançados do proletariado estariam necessariamente nas regiões mais industrializadas. Não se justifica essa idéia de que, na participação em um processo de lutas e numa conseqüente transformação, as regiões ditas “periféricas” estão fatalmente condenadas a seguir a reboque dos centros de poder econômico e político. Para nós, todo setor explorado e oprimido é potencialmente revolucionário, não apenas um setor que conduzirá todo o processo, não há preponderância do operariado fabril e das cidades. A nossa fraternidade é entre todos os nossos pares, irmãos de luta e que, explorados hoje, se dispõem à construção de um novo mundo. A Revolução será integral e global, ou não será.
Poder popular, autogestão e federalismo fazem parte de nossos princípios, portanto inegociáveis e inflexíveis. Assim, o protagonismo dos setores explorados e oprimidos, dos campos, das cidades e das florestas, das diversas regiões brasileiras, latino-americanas e mundiais; indígenas, desempregados, pescadores, operários, professores e todos outros, é fator indispensável se almejamos com sinceridade a construção de um mundo novo, de uma nova forma de vida. Somente conquistada por meio da transformação revolucionária desta sociedade e a construção de uma nova organização social baseada na autogestão, na democracia direta, na solidariedade e na fraternidade entre iguais.
Sabemos que esta não é uma tarefa fácil. O momento exige uma força hercúlea, mas nós, por estas bandas, estamos seguindo, com esforço e dedicação militante. Como “cabras valentes”, como uma mulher que luta para não ter sua casa (e sua memória) removida por causa de obras de infra-estrutura do capitalismo; como trabalhadores e trabalhadoras que lutam a partir das bases em seus locais de trabalho; como comunidades tradicionais que se mantém firmes e em luta para alcançar e manter algumas mínimas e fundamentais conquistas, após terem sido roubados em seus direitos essenciais ao longo de tanto tempo; como todos aqueles e aquelas que não “arredam o pé” da luta contra todas as formas de opressão e dominação a que estão submetidos neste mundo de miséria, morte e sofrimento.
Caminhamos com o punho ao alto, e certos de que esta é a estrada que nos leva ao objetivo almejado: a igualdade econômica e política de todos/as e a liberdade em seu mais alto grau de expressão, e não um mero privilégio comprado e sustentado pelos capitalistas e administradores do Estado. E que essas aspirações tornem-se, no trilhar do nosso percurso de luta, uma expressão real da vitória dos oprimidos e explorados deste mundo.
Assinam esta declaração:
– Coletivo Anarquista Núcleo Negro – Pernambuco
– Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP) – Alagoas
– Coletivo Libertário Delmirense (COLIDE) – Alagoas
– Organização Resistência Libertária (ORL) – Ceará
Reunidos no I Encontro do Anarquismo Especifista do Nordeste
Maceió – Alagoas, nos dias 08 e 09 de outubro de 2011.