Nesta semana que marcou o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, no 28 de setembro, quando também se completam 150 anos da Lei do Ventre Livre, não esqueçamos que a luta para que mulheres e meninas tenham acesso a seus direitos reprodutivos é também uma luta de classe e raça! A proibição do aborto não impede que abortos aconteçam, ela o criminaliza, marginaliza e mata as mulheres que abortam, e a grande maioria dessas mulheres são negras, pobres e periféricas.
Como anarquistas especifistas, entendemos que a luta pelo aborto legal, seguro e gratuito deve ser abordada por um viés de saúde publica, e a luta pelos direitos reprodutivos deve ser pensada de forma conjunta à luta pelo direito ao aborto. Se deixarmos de pautar a liberdade reprodutiva, o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, direito sobre nossos corpos, arriscamos perder ou renunciar a outros direitos. É isso o que temos visto acontecer nos últimos passos do Estado e do governo de Bolsonaro, com o avanço das agendas que violentam mulheres e meninas, e ameaçam seus direitos reprodutivos já conquistados. Os projetos de lei do “Dia do Nascituro” e da “Semana da Vida” já estão sendo desenvolvidos e votados nas câmaras. Além de sua inconstitucionalidade, eles marcam mais um passo da política criminosa e conservadora do Estado.
Direitos reprodutivos implicam o direito ao aborto, mas também estão relacionados a direitos mais amplos como: direito ao pré-natal, planejamento familiar com acompanhamento profissional, medicina preventiva, acompanhamento psicológico, creches públicas, ensino de educação sexual e reprodutiva acessível nas escolas e universidades, campanhas sobre o uso de preservativos e de outros métodos contraceptivos e o combate à desigualdade de gênero.
O aborto acontece diariamente no Brasil, a criminalização do aborto não impede que as mulheres abortem, ela sustenta uma realidade em que ele acontece em situações precárias e de risco à vida dessas mulheres. O fim da criminalização do aborto significa dar um basta nas mortes de mulheres negras e pobres. Mulheres brancas e de classe média, alta ou da elite, quando precisam fazer um aborto, procuram clínicas particulares que façam o procedimento ou viajam para um país que tenha o acesso legal ao aborto, seja ele gratuito ou não. Enquanto isso, mulheres negras, pobres e periféricas morrem de complicações causadas por abortos clandestinos, feitos em péssimas condições de salubridade, muitas vezes até sem a presença de um médico, com o uso errado de medicamentos e instrumentos. O aborto existe na sociedade vivendo de forma marginalizada e com o conhecimento do Estado, a sua descriminalização é uma forma de evitar o alto índice de mortes maternas decorrentes de abortos inseguros principalmente em populações mais pobres. Entre as mulheres que abortam no país, 90% têm no máximo o ensino médio completo e 33% não possuem nenhum nível de instrução. A falta de acesso a condições de atendimento em uma saúde digna, a uma equipe qualificada para o acompanhamento e a um procedimento seguro constitui uma política de extermínio das mulheres pobres, periféricas e negras, do campo e da cidade, uma política de feminicídio orquestrada e executada pelo Estado.
No começo de setembro, o prefeito de Fortaleza sancionou a Lei 11.159/2021 que cria a “Semana pela Vida”, com o objetivo de promover palestras, seminários e campanhas contra o uso de anticoncepcionais e aborto, e a aplicação de outros dispositivos que atuam contra os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Esse projeto de poder também ataca a Lei de Planejamento Familiar, prejudicando o já difícil acesso das mulheres a métodos contraceptivos e educação sexual e reprodutiva, e obriga as mulheres a gestar.
Na câmara de vereadores de Maceió, tem sido discutido o PL do “Dia do Nascituro” e da “Semana da Vida”, um projeto de lei que propõe a realização de campanhas contra o aborto, inclusive contra situações que já são previstas em lei, como em casos de mulheres e meninas vítimas de estupro, gestantes sob risco de morte e em casos de fetos anencefálicos. Além disso, esse PL pretende que sejam executadas campanhas em escolas, postos de saúde e outros espaços públicos, articulando ações de campanha do município de Maceió com Igrejas, promovendo pregação religiosa dentro de escolas e outros espaços públicos, desfazendo, assim, a separação entre Estado e Religião, atacando o Estado Laico, atacando o princípio de prioridade na proteção de crianças e adolescentes contra violência, abuso e exploração sexual.
Não é de hoje que enfrentamos o discurso religioso que contamina as políticas públicas. A articulação entre o ministério de Damares Alves, as bancadas da bíblia espalhadas pelo país e os movimentos conservadores pró-vida estão sempre dispostos a promover novos ataques aos direitos reprodutivos de mulheres e meninas, e pouco interessados com suas vidas e com sua segurança. Além disso, as mulheres são forçadas a enfrentar situações de pobreza e miséria, a dificuldade de acesso a serviços que garantam vidas dignas, educação de qualidade, atendimento médico, moradia digna, comida e trabalho, e a verem os futuros de seus filhos arrancados pela mão do Estado racista e patriarcal a serviço do capital.
É irônico que o mesmo Estado que criminaliza o aborto, colocando a vida de milhares de mulheres em risco, é aquele que destrói famílias negras e pobres nesse país. Não só destrói pela miséria como lança suas tropas de controle para retirar crianças de suas famílias e jogá-las em abrigos por causa de todas as mazelas da pobreza. Nunca as famílias da elite, sempre a responsabilização de mães solo na periferia condenadas a viver sem saneamento, sem transporte público, sem condições para manutenção das crianças na escola! Cria a pobreza e criminaliza a pobreza, rompendo vínculos familiares e comunitários. Chamadas de loucas, putas e negligentes, são as mulheres, mais uma vez, que pagam perdendo seus filhos em um processo de privatização de problemas que são públicos.
Lutamos pelo direito ao aborto legal e seguro, pela nossa liberdade, pelos nossos corpos, e por nossas vidas! Lutamos pelo fortalecimento de políticas públicas de saúde e por educação sexual e reprodutiva! Lutamos por educação sexual para prevenir, contracepção para não engravidar, aborto legal, seguro e gratuito para não morrer! Lutamos contra o avanço do conservadorismo e pelo direito à vida plena de todos os corpos! Lutamos por uma educação emancipadora de gênero e sexualidade para combater a violência de gênero e a violência LGBTfóbica! Lutamos por autonomia e autogestão dos nossos corpos! Lutamos contra o estado racista, o capitalismo e patriarcado!
Nós, anarquistas especifistas, acreditamos que a construção do poder popular faz parte da nossa luta contra a opressão dos nossos corpos!
Nenhuma a menos!
Nem mãe sem desejar, nem presa por abortar, nem morta por tentar!
Coordenação Anarquista Brasileira