mar 202016
 

Por Grupo de Trabalho em Gênero da Organização Resistência Libertária (ORL),

organização integrante da Coordenação Anarquista Brasileira (CAB)

Dentro da sociedade capitalista a mulher é duas vezes escrava: é protegida, a tutelada, a “pupila” do homem, criatura domesticada por um senhor cioso e, ao mesmo tempo , é a escrava social de uma sociedade baseada no dinheiro e nos privilégios mantidos pela autoridade do Estado e pela força armada para defender o poder, o dominismo, o industrialismo monetário.”

Maria Lacerda de Moura.

É difícil precisar uma definição de feminismo, pois este termo traduz um processo de lutas que é atravessado por influencias de diferentes ideologias, desde concepções liberais-burguesas até distintas concepções de socialismo. Inicialmente, podemos estabelecer que o feminismo pretende a busca de igualdade política, econômica, social e sexual entre homens e mulheres, pessoas cisgeneras ou transgeneras[1]. Portanto, o terreno de contestação (e de afirmação) do feminismo são as implicações sociais das construções de gênero e das pessoas e símbolos envolvidos nesta construção.

Assim, podemos definir o feminismo como o conjunto entre a teoria e a prática que pretende a construção de uma nova sociedade, em que impere a igualdade de gênero. Quanto ao anarquismo, entendemo-lo como o objetivo de “transformar a atual sociedade capitalista burguesa em uma sociedade que assegure ao trabalhador os produtos de seus esforços, sua liberdade, independência, igualdade política e social. Esta outra sociedade será o comunismo libertário, no qual a solidariedade social e a individualidade livre acharão sua expressão plena, e no qual estas duas ideias se desenvolverão em perfeita harmonia.” [Plataforma Dielo-Truda]. Assim, entendemos que o anarquismo se aproxima do feminismo porque ambos tocam nas relações de poder instituídos na sociedade, visando destruir o poder autoritário e a construir o poder popular, desde baixo e à esquerda, sempre pautado nas lutas pela igualdade e contra as opressões, incluindo a igualdade de gênero.

Anarquistas associam o Estado ao poder centralizado, portanto, ao autoritarismo, e acreditam não ser possível chegar a uma outra sociedade através de etapas que conservem a existência do estado, pois acreditamos, como mostra a historia, que o estado não irá definhar depois de algum tempo.Conservá-lo é fortalece-lo e, enquanto ele existir, será autor de inúmeras injustiças e não permitirá que floresça a liberdade. Portanto, nós anarquistas não acreditamos ser possível a adoção de um meio que conflite com o fim pretendido, e desde já buscamos coerência com nossos objetivos finalistas: o socialismo libertário. Ainda como anarquistas acreditamos na interdependência estrutural das três esferas: política, econômica e social e na interseccionalidade das opressões.

Nós, feministas anarquistas, estamos inseridas nas fileiras das feministas classistas. Chamamos de feministas classistas aquelas que reconhecem que a sociedade é dividida em classes e identificam a luta de classes como seio da opressão, permanecendo na luta ao lado classe explorada.

Para nós, feministas anarquistas, as opressões que as mulheres sofrem surgem e se potencializam a partir de diversas esferas: econômica, social, política, étnica, racial e de diversidade sexual. Com isso, queremos dizer que além da desigualdade econômica, um feminismo anarquista deve compreender a construção das desigualdades de gênero sobre diversas interfaces. Aqui, precisamente, diferenciamo-nos do feminismo marxista, essencialmente economicista. Para as feministas marxistas, a opressão das mulheres sob o capitalismo tem uma base essencialmente econômica, mas para nós, feministas anarquistas, a opressão das mulheres no capitalismo não tem uma base essencialmente econômica. É claro que fatores de ordem econômica agem na construção das opressões de gênero no capitalismo. Basta lembrar o trabalho doméstico da mulher, que não é pago, mas que agrega valor, além da jornada de trabalho apropriada diretamente pelo empregador.

O capitalismo nos explora duas, três ou quatro vezes mais, quando nos força aos dois trabalhos: de produção e o de reprodução. O trabalho de produção está associado à produção de mercadorias e serviços, em espaços públicos ou privados[2]. O trabalho de reprodução diz respeito tanto à obrigatoriedade da função biológica da reprodução, quanto à função socializada de cuidar da casa e dos filhos, assim como satisfazer as necessidades masculinas de intimidade e satisfação sexual. Esses trabalhos de reprodução foram historicamente ocupados por mulheres. Atualmente, mesmo quando a mulher branca se aparta do trabalho de reprodução, ocupando-se exclusivamente do trabalho de produção no capitalismo, deixa uma mulher negra nesse posto, mais um sintoma de uma sociedade que conjuga capitalismo, machismo e racismo. Sempre é associado à mulher os trabalhos de produção e reprodução. Assim, por exemplo, no Brasil as mulheres costumam receber salários menores que os dos homens, nos mesmos postos de trabalho, além de serem excluídas de certas posições consideradas mais apropriadas ao sexo masculino.

Quando o gênero e a raça se entrelaçam, a opressão toma seu posto mais cruel. A opressão da mulher negra pelo Estado e pelo capitalismo adquirem outras formas de expressão. O racismo, marca de um país ainda escravocrata, reserva às mulheres negras, mais que às brancas, serviços domésticos sem direitos trabalhistas etrabalhos informais. São as mulheres negras as mais presentes no sistema penitenciário brasileiro, as que criam seus/suas filhos/filhas sozinhas, as mais espancadas pela polícia, as que mais enfrentam os senhores de engenho e os capitães-do-mato. São as mulheres negras as que mais sofrem com as violências institucionais do Estado, desde as doenças transmitidas por falta de saneamento básico nos bairros da periferia, até a ausência de serviços de saúde e educação em seus bairros. São as mulheres negras que mais sofrem em revistas íntimas vexatórias nas filas dos presídios brasileiros quando vão visitar companheiros e filhos.

As percepções mais recentes têm mostrado, contudo, que às atitudes tradicionais a respeito da mulher somam-se outras formas de machismos, nas quais a antipatia a elas dirigida tem se expressado de forma simbólica ou indireta. Assim, hoje podemos distinguir entre uma forma de machismo antigo (mas ainda presente) e uma forma de machismo percebido recentemente. O machismo antigo define-se pelo endosso a papéis de gênero tradicionais, tratamento diferencial entre mulheres e homens e estereótipos sobre a menor competência feminina; enquanto o machismo percebido recentemente associa-se à negação de que a discriminação contra a mulher ainda exista e a um antagonismo contra as atuais lutas da mulher por maior inserção nas lutas sociais. O machismo percebido recentemente, portanto, baseia-se, também, em sentimentos negativos sobre as mulheres, muito embora eles sejam mais encobertos e relacionados a práticas mais contemporâneas.

Partimos da certeza que vivemos em uma sociedade patriarcal que tem em sua gênese a propriedade sobre o corpo e a vida das mulheres. Para nós feministas anarquistas, o patriarcado só será destruído com a derrubada do capitalismo. Assim, temos uma ponte entre o feminismo e o anarquismo, em que ambos contestam as relações de poder advindas de construções sociais de gênero, poder econômico, social ou simbólico.

Por isso, para nós o anarquismo não existe sem o comprometimento com a luta feminista.No entanto, não é suficiente reconhecer que a anarquia é “um lindo ideal”. É necessário querer chegar à anarquia através do combate às opressões que existem hoje, ou ao menos guiar esse combate para nos aproximar da anarquia, tratando de atenuar o domínio do Estado, do capitalismo e dos privilégios de identidade de gênero, raça, e orientação sexual, reivindicando sempre mais liberdade e mais justiça social.

Maria-Lacerda-de-Moura-anarquista2

[1] Pessoas trangêneras nascem com um sexo que difere do socialmente vinculado à identidade de gênero que elas se reconhecem. Pessoas cisgêneras nascem com um sexo que coincide com o socialmente vinculado à identidade de gênero que elas se reconhecem. Compreendemos por mulheres as pessoas que se identificam com essa identidade de gênero, portanto, mulheres cisgêneras ou transgêneras.

[2] Se analisamos a história da América Latina, não é correto apontar que historicamente foi papel apenas do homem executar trabalhos de produção em espaços públicos, sob pena de estarmos nos apropriando de um feminismo branco e eurocêntrico. As mulheres negras, escravas, sempre executaram trabalhos de produção, nos canaviais e cafezais. As mulheres negras nunca foram associadas ao sexo frágil, relegadas apenas ao espaço do lar.

  2 Responses to “Pontes entre o Anarquismo e o Feminismo”

  1. Muito bom esse texto, gostaria de saber se posso utilizá-lo num grupo de estudos sobre feminismo que estamos organizando aqui em Seabra – BA.
    Vida longa ao feminismo!

    Há-braços!

    • Sim, certamente Therezinha. Quanto maior divulgação do texto, melhor. Se possível, compartilhe aqui também o resultado das discussões que conseguiu promover aí em Seabra.

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